Em um sistema tributário tão complexo e burocrático, como o brasileiro, é improvável que uma empresa resista ao longo de toda sua existência sem sofrer sequer uma autuação da Fazenda (seja no âmbito federal ou estadual). Segundo os dados oficiais divulgados pela União, no ano de 2019, o crédito tributário constituído em relação a pessoas jurídicas, através de autos de infração ou de lançamento, foi de R$ 187,79 bilhões; sendo que, o principal setor atingido foi o das indústrias (31,1%). No âmbito estadual, o SEFAZ-RS vem, em média, constituindo anualmente cerca de R$ 2 bilhões em crédito tributários de ICMS, através de autuações.
Diante desse cenário tão assustador para os empresários, há um aspecto a ser considerado: muitas das autuações são lavradas contendo sérios erros formais e/ou materiais, capazes de gerar sua própria anulação. Não é incomum nos depararmos com lançamentos em que a autoridade administrativa (à margem da lei): ingressa na empresa - sem ordem judicial - com auxilio policial; se recusa em dar vistas do processo aos advogados; omite informações relevantes no relatório do lançamento; inclui indevidamente funcionários/sócios da empresa na condição de responsáveis pelo debito; lavra autuações sem provas robustas (às vezes, com meros indícios); cobra créditos extintos; aplica multas desproporcionais; entre outras irregularidades. E, é sobre isso que trataremos nesse breve artigo.
Preliminarmente, há que se destacar que em matéria tributária vigora o princípio da legalidade em sentido estrito. Em razão dessa norma, a autoridade administrativa - responsável pela constituição do crédito - está estritamente vinculada à lei para proceder o lançamento. A finalidade dessa vinculação é assegurar que o tributo seja cobrado de todo e qualquer contribuinte que se enquadre na hipótese de incidência prevista (sob pena, inclusive, de a autoridade fiscal ser responsabilizada, caso não o faça), assim como assegurar que ninguém seja obrigado a cumprir uma obrigação tributária não prevista em lei.
Em decorrência dessa norma, cabe ao agente fiscal (ao proceder o lançamento) demonstrar: a) através de provas, que ocorreu o fato gerador e que o contribuinte é o sujeito passivo da obrigação; b) a matéria tributável; c) o montante do tributo devido; e, d) se for o caso, causas que justifiquem a aplicação de uma penalidade. Ressalte-se: todos esses requisitos deverão estar atrelados ao que lei dispõe. Parece um tanto quanto óbvio, porém não é o que ocorre na prática.
A título ilustrativo, trago alguns exemplos vivenciados pelo nosso escritório:
Em uma determinada autuação estadual, a autoridade administrativa - ao lavrar o auto de lançamento – apontou o montante devido pela contribuinte, a título de ICMS. Entretanto, desconsiderou os créditos que a empresa possuía, decorrentes de um benefício fiscal que a lei estadual lhe concedia. Em consequência, o lançamento apontou um valor muito superior ao efetivamente devido. E, em razão disso, após recurso ao TARF (tribunal administrativo no âmbito estadual), obtivemos uma decisão que anulou grande parte do lançamento.
Em outro caso, recentemente, obtivemos decisão judicial na qual foi suspenso um lançamento, em que o agente fiscal havia apontado omissão de receitas da empresa, com base apenas em uma planilha elaborada por ele próprio e que não trazia qualquer prova nesse sentido ao longo de todo o processo administrativo. Para piorar, a maior parte dos valores lançados havia sido atingida pela decadência (portanto, se tratava de créditos extintos). O juiz ao deferiu o pedido liminar foi enfático, no sentido de que o auto de lançamento era nulo: “... se mostra aparente a nulidade do ato por prejuízo à ampla defesa do contribuinte, tendo em vista que não é possível identificar as informações provenientes da operadora de cartão de crédito que ensejaram a constituição dos créditos tributários. (...) Conforme se depreende pela análise da documentação, houve recolhimento parcial do ICMS devido pela autora, sem ser constatado dolo, fraude ou simulação, recebendo a notificação do lançamento apenas em 10.09.2018, razão pela qual resta implementada a decadência do ICMS relativo ao período de janeiro de 2013 a julho de 2013”.
Tais casos são mais comuns do que se imagina. No afã fazendário de realizar o lançamento, principalmente, diante da ausência de caixa dos governos (estaduais e federal), muitas vezes o princípio da legalidade acaba sendo soterrado. Infelizmente, cabe às empresas o papel de verificar – dentro desse emaranhado de regras tributárias - se os lançamentos cumpriram as regras previstas em lei, sob pena de arcar com obrigações tributárias que não são devidas.
Rafael Paiani, advogado especialista em Direito Tributário e sócio do escritório Atílio Dengo Advogados Associados