As tarefas do estado são desempenhadas por pessoas naturais que recebem, por delegação, certa quantidade de poder. Isso ocorre em todos os níveis da estrutura estatal. É essa pessoa natural ou agente público que dá concreção às relações entre o estado e seus cidadãos. Porém, conforme já alertou Montesquieu, todo homem que dispõe de poder tende a abusar dele, estirando-o até, ou para além, dos próprios limites. Por isso é que o conceito de Estado de Direito é tão importante: ele se efetiva quando e enquanto o sistema de produção jurídica for capaz de limitar e legitimar o exercício desse poder. Para esse propósito, a criminalização dos comportamentos que tipificam o abuso de autoridade é um importante meio de aprimoramento do estado moderno.
Até 2019 os crimes de abuso de autoridade estavam previstos na Lei 4.898/65. Esse diploma continha dois grandes defeitos. O primeiro deles é que as condutas ilícitas foram descritas de forma vaga e genérica ocasionando insegurança jurídica para a vítima e para o acusado. O segundo e mais grave era o seu alcance, demasiadamente restrito. Isso, porque as circunstâncias ali caracterizadas como antijurídicas referiam-se apenas a poucas situações que punham em risco às liberdades civis – como os direitos à livre locomoção, reunião, associação, crença, etc. – todas elas relacionadas com as funções desempenhadas pelo poder judiciário ou pelos órgãos de segurança pública. Nenhum dos tipos ali referidos guardava pertinência com a atividade quotidiana dos demais agentes da administração direta. Dessa forma, a despeito da real existência de atos praticados com abuso de poder, apenas em situações muito excepcionais é que esses agentes incorreriam no crime de abuso de autoridade, nos termos definidos pela Lei 4.898/65.
Na seara do direito tributário, esse problema afetou as relações entre fisco e contribuinte. Apesar do artigo 145, § 1º, da CF/88, assegurar à administração tributária o direito de fiscalizar, enfatizando – ao mesmo tempo – o dever de respeitar os direitos individuais dos contribuintes, até bem pouco tempo não era incomum a ocorrência de procedimentos de fiscalização contaminados por abuso de poder. Desde a postergação injustificada do procedimento de fiscalização; a obtenção e o uso de provas ilícitas; a distorção de fatos ou a omissão de informações relevantes; a negativa de vistas do processo administrativo e, até mesmo, a invasão do domicílio do contribuinte, mediante coação pela presença de força pública, sem ordem judicial. Em muitos casos, os atos produzidos no curso desses procedimentos foram anulados pelo poder judiciário. Porém, como o autor dessas ações permanecia impune, a prática abusiva era reiterada.
A nova lei de abuso de autoridade, promulgada em setembro de 2019, mudou essa realidade. A lei 13.869/19 estabelece que “todo o agende público que praticar as condutas descritas com a finalidade de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, comete o crime de abuso de autoridade”. As penas podem chegar a 4 anos de detenção. A reincidência pode levar a perda do cargo. Além disso, a condenação torna certa a obrigação de indenizar a vítima pelo dano sofrido e deve ser fixada na própria sentença condenatória. As condutas juridicamente reprovadas estão adequadamente descritas nos artigos 9 a 38 e, ao contrário da Lei 4.898/65, contemplam expressamente a atividade de fiscalização. Para os contribuintes é de particular importância os artigos 22 a 37, que descrevem as condutas pertinentes à atividade de fiscalização tributária. Esses dispositivos destinam-se à proteção dos direitos fundamentais do contribuinte, coibindo o abuso de poder em especial em relação a inviolabilidade do domicilio do contribuinte, a proibição de provas ilícitas; a duração razoável, a incolumidade e o direito de vistas do processo. O artigo 36 trata do abuso da autoridade judicial nos casos de excesso de penhora, em processos de execução. Segundo ele, haverá abuso de poder se, após o executado demonstrar que os bens indisponibilizados excederam o valor estimado para a satisfação da dívida, o juiz deixar de corrigir o excesso. Trata-se de uma medida importante porque com frequência, a penhora online indisponibiliza todos os recursos financeiros do executado e, apesar dos compromissos vincendos, à empresa só restava aguardar a liberação do excedente conforme a boa vontade do juiz.
Passados pouco mais de um ano de vigência da nova lei, percebe-se resultados positivos. Os agentes da fazenda pública têm demonstrado maior preocupação com os direitos do contribuinte, notadamente em relação a celeridade e a licitude das provas. Como dito anteriormente, o Estado de Direito se consolida quando e enquanto o sistema jurídico for capaz de limitar e legitimar o exercício do poder. A lei 13.869/19 promove a civilidade na relação entre fisco-contribuinte e ressalta a legalidade na produção dos atos administrativos.
Atílio Dengo, Advogado, Professor e Doutor em Direito Tributário