Relembremos o imbróglio: em 2021, o STF declarou inconstitucional a cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS (DIFAL) por ausência de Lei Complementar que autorizasse os Estados a exigi-lo. Prontamente o Congresso Nacional aprovou a Lei Complementar 190. Apesar disso, a sua promulgação só ocorreu em 4 de janeiro de 2022. Ocorre que, para a segurança dos contribuintes, o princípio da anterioridade, expresso no artigo 150, III, alíneas “b” e “c”, da Constituição Federal, estabelece que – nos casos de instituição ou aumento de tributo – a sua cobrança só pode ocorrer no exercício seguinte ao da publicação da lei. Assim, segundo esse entendimento, os Estados não poderiam exigir o DIFAL a partir de 2022, como estão fazendo.
O conflito foi levado ao STF e o julgamento teve início no dia 29 de setembro passado. Mas foi interrompido por um pedido de vistas do Ministro Dias Toffoli, após a manifestação do Ministro Alexandre de Moraes, relator do caso. Em seu voto, o relator sustenta que não há inconstitucionalidade na cobrança do DIFAL ainda em 2022. Conforme noticiado nos jornais, para ele: “A LC 190/2022 não modificou a hipótese de incidência, tampouco a base de cálculo, mas apenas a destinação do produto da arrecadação”. Dessa forma, não se instituiu um novo tributo.
O entendimento apresentado pelo relator contraria a tradição do STF que, em casos pretéritos semelhantes, posicionou-se pela inconstitucionalidade da cobrança. Noutras ocasiões o Supremo já se manifestou afirmando que a instituição de um tributo não ocorre apenas quando se insere uma nova figura tributária de espécie diversas das já existentes. Segundo essas decisões pretéritas, também ocorre instituição de tributo quando a lei produz mudanças qualitativas na sua configuração, alterando por exemplo, as partes envolvidas na relação tributária, vale dizer Estado e contribuinte, (vide nesse sentido RE 266.602-5 MG). Foi isso que a LC 190/22 promoveu.
Recorde-se que até a emenda constitucional 87/15, nas vendas interestaduais, o imposto era calculado pela alíquota interestadual e o valor, recolhido para o Estado de domicílio do estabelecimento vendedor. Somente nos casos em que o adquirente da mercadoria era contribuinte do imposto, fazia-se necessário recolher a diferença entre as alíquotas, obrigação esta, de responsabilidade do adquirente perante o Estado de seu domicílio. Tratando-se de não contribuinte do ICMS, nenhuma obrigação recaia ao adquirente.
Após a EC 87, todas as operações interestaduais sujeitas ao ICMS passaram a ser calculadas pela alíquota vigente no Estado de destino da mercadoria, não importando a situação do comprador, se contribuinte ou não do imposto. Nada mudou nas operações em que o adquirente era contribuinte do imposto. No entanto, mudanças ocorreram nas operações envolvendo adquirentes não contribuintes do ICM, na grande maioria, pessoas físicas. Nesses casos, além de recolher o valor correspondente a alíquota interestadual para o Estado de domicílio, o estabelecimento vendedor foi obrigado a recolher o diferencial de alíquota para um Estado em que ele não tem domicílio.
Para viabilizar essa cobrança foi necessário submeter o estabelecimento vendedor à jurisdição de outro Estado, aquele do domicílio do adquirente não contribuinte. É o que a Lei Complementar 190/22 fez ao inserir um novo parágrafo 2º, ao artigo 4º, da LC 87/96. Noutras palavras, nos casos em que o adquirente não é contribuinte de direito do ICMS, o estabelecimento vendedor, antes submetido apenas a jurisdição tributária do Estado de domicílio, deve agora se sujeitar ao poder de tributar de um segundo Estado, aquele do lugar de destino da mercadoria. Desse modo, o estabelecimento tem agora duas obrigações tributárias: a antiga, cujo credor é o Estado do seu domicílio e a nova, cujo credor é outro Estado da federação. Sob essa perspectiva, para o estabelecimento contribuinte surge uma nova relação tributária. E isso corresponde a instituição de um novo tributo.
Espera-se que ao apresentar seu voto, o Ministro Dias Toffoli reconduza o julgamento. Em consonância com as decisões pretéritas do Supremo Tribunal Federal e, portanto, em sentido favorável aos contribuintes.
Atílio Dengo, advogado, professor e doutor em Direito Tributário