Atílio Dengo Advogados Associados

Dispensa de empregados durante a pandemia e o fato do príncipe

30/06/2020

Transcorridos mais de 100 dias de estado de calamidade pública face a pandemia causada pela Covid-19, a dispensa de trabalhadores e as dificuldades financeiras das empresas são agravadas não apenas pela retração econômica, mas também pela necessidade de fechamento dos estabelecimentos por ordem governamental. No presente artigo, vamos analisar se é possível responsabilizar o poder público na hipótese de algum ato da Administração culmine na paralisação da atividade empresarial e, com isso, venha inviabilizar o empreendimento econômico. Trata-se do fato do príncipe.

O fato do príncipe é previsto no artigo 486 da CLT e constitui uma ressalva à assunção dos riscos da atividade econômica pelo empreendedor. Naturalmente, o empresário, ao buscar o lucro, assume os riscos inerentes ao empreendedorismo (princípio da alteridade – artigo 2º da CLT). Não será razoável, porém, impor ao mesmo o prejuízo provocado por uma ação discricionária do poder público. Deste modo, o caput do artigo 486 da CLT prevê que, “no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.”.

Entretanto, em tempos de crise econômica e sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, surge a dúvida se o fato do príncipe pode ser invocado pelo empresário que tiver que dispensar empregados neste momento. Aliás, a questão ficou mais evidenciada em dois momentos nesse período de calamidade pública: primeiro, uma declaração do Presidente da República que comentou, de modo abstrato, que os governadores teriam que pagar as rescisões trabalhistas; o segundo, a divulgação pela mídia do caso de uma grande rede de churrascarias que noticiou o fechamento de estabelecimentos, com a invocação do fato do príncipe, como justificativa para não pagar as verbas rescisórias de aproximadamente quinhentos empregados desligados.

É certo que o isolamento social inviabiliza alguns empreendimentos que acabam tendo uma perda definitiva de receita, como bares, restaurantes e pequenos comércios. Já em outros estabelecimentos, em especial do setor de saúde, a crise provoca uma escassez de demanda, a ser regularizada no futuro: pessoas adiam tratamentos e consultas que serão realizadas tão logo sejam suspensas as medidas restritivas ao seu funcionamento. Mas, afinal, o fato do príncipe poderá ser invocado pelo empregador que despedir empregados neste momento? Temos a convicção de que a resposta é negativa!

Com efeito, o fato do príncipe parte da lógica de que o administrador público não pode, deliberadamente, prejudicar o particular. Assim, só é possível invocar o instituto diante da prática de um ato discricionário pela Administração Pública. Imaginemos o exemplo clássico em que o poder público pretenda fazer uma estrada ou uma represa e, existindo opções que não causariam qualquer dano aos particulares, o gestor público faça a opção por fazer a obra num local que causa dano a diversos particulares. Assim, aqueles empresários atingidos poderão exigir que o ente público responsável pelo prejuízo arque com parte das rescisões contratuais de seus empregados.

Neste atual momento, é preciso lembrar que não há nenhum respaldo jurídico para a afirmação no sentido de que o poder público arcará com as indenizações rescisórias integralmente. Caso uma empresa adote este procedimento, dispensando os empregados com a informação de que o governo estadual ou municipal pagará o acerto rescisório, estaremos diante de uma conduta irresponsável e de absoluta má-fé patronal. Tanto é assim que a renomada churrascaria sofre uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho tendo, inclusive, que reintegrar seus empregados dispensados, sob pena de multa diária de mil reais por funcionário.

Portanto, a aplicação do fato do príncipe exige que haja (i) a paralisação da atividade, e, sobretudo, que seja motivada por (ii) ato discricionário do poder público que concorra para a inviabilidade da atividade econômica. No caso da pandemia, em regra, é fato que os empresários não têm culpa do insucesso do empreendimento econômico no contexto atual. No entanto, a culpa também não recai ao poder público, na medida em que os gestores estaduais ou municipais restringiram a atividade econômica sem espaço de discricionariedade, buscando esvaziar os espaços públicos e privados como medida de contenção à propagação do vírus. Enfim, é entendimento pacífico nos tribunais que as medidas adotadas com o propósito inafastável de salvar vidas não enseja a responsabilidade do poder público.

Alexandre Bastos, advogado trabalhista e sócio do escritório Atílio Dengo Advogados Associados.

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