Atílio Dengo Advogados Associados

Comentários sobre a decisão do STJ que mudou entendimento sobre emissão de Certidões Fiscais

03/09/2019

Em decisão recente, a 1ª Turma do STJ quebrou uma longa tradição. Pelo menos desde 1997, o Superior Tribunal reconhecia o direito de a filial obter certidão de regularidade fiscal quando o fato impeditivo fosse apenas as dívidas do estabelecimento matriz ou vice-versa. Essa tradição decorre da interpretação dada ao artigo 127, do CTN, o qual determina que, relativamente aos fatos que dão origem a obrigação tributária, o domicílio fiscal da pessoa jurídica é o de cada estabelecimento. Reconheceu-se, assim, o princípio da autonomia tributária dos estabelecimentos. Rompendo com essa tradição, em 27/08/2019, o STJ decidiu que a certidão não pode ser emitida para um estabelecimento se o outro tiver débitos. O argumento usado é que matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica. É muito provável que essa decisão passe a ser um novo marco para a emissão de certidões tributarias por parte da União, Estados e Municípios. Este artigo analisará, com breves considerações críticas, a decisão tomada.

Quando um contribuinte deseja contratar uma operação financeira, alienar imóveis ou participar de licitação públicas, ele é obrigado a demonstrar que está em situação regular com o Fisco apresentando uma certidão. A certidão é um ato administrativo vinculado no qual, preenchidos certos requisitos, o Fisco afirma a existência de um fato que é de seu conhecimento. Os requisitos a serem preenchidos estão no CTN. Para a certidão negativa de débitos (CND), a inexistência de débitos, conforme determina o artigo 205. Para a certidão positiva com efeitos de negativa (CPD-EN), a certidão deve ser emitida se presente uma das hipóteses do artigo 206, dentre elas as mais frequentes são: a) existência de parcelamento; b) interposição de recurso administrativo dentro do prazo legal; c) o deposito judicial do valor do tributo; ou, d) a suspenção judicial, em caráter liminar.

Em matéria de direito empresarial, é certo que os estabelecimentos matriz e filial integram o acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica. Apesar disso, a legislação tributária reserva um importante papel ao conceito de estabelecimento, uma vez que por ele perpassam a grande maioria dos atos configuradores da obrigação tributária. Assim, exceto em relação aos tributos cujos fatos dizem respeito a pessoa jurídica como um todo – como o caso do IRPJ – em todos os demais, interessa o conceito de domicílio. Vemos isso em relação ao IPI, ao PIS/COFINS, ao ICMS e ao ISS. Por isso, a obrigação de que cada estabelecimento se inscreva com número próprio no CNPJ tem especial relevância para a atividade fiscalizatória da administração tributária.

No recurso em que a nova decisão foi tomada (AREsp 1286122) discutia-se o direito da filial obter uma certidão quando o fato impeditivo fosse apenas as dívidas da matriz. Mas, no caso que serviu de paradigma para a nova decisão, o Recurso Especial nº 1.355.812, julgado em 2013, o que se discutia era se os valores depositados em nome da filial poderiam ser objeto de penhora via BACEN-JUD, em execução fiscal de dívidas tributárias da matriz. Foi esse o contexto que resultou na premissa de que matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica. Num caso discute-se o direito a satisfação de crédito tributário; noutro, o direito a emissão de uma declaração com fé pública para apresentação perante terceiros. É evidente que a transposição da premissa foi inadequada.

Se a atual decisão for mantida e aplicada a casos futuros, ela repercutirá produzindo incoerências na aplicação de outras normas. Demonstrarei isso ao analisar as relações jurídicas que se instauram em face de uma certidão tributária, isto é, as relações entre fisco e contribuinte; contribuinte e terceiros; terceiros e fisco.

A relação entre fisco e contribuinte decorre do artigo 5º, inciso XXXIV, da CF/88: “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.  A certidão é um ato administrativo que confirma, aos interessados, a existência de um fato de conhecimento da administração. Se esse fato existe, a administração tem o dever de emiti-la. Portanto, a relação jurídica entre fisco e contribuinte restringe-se ao direito de obtê-la. O conteúdo do ato não produz direitos para o contribuinte frente a Fazenda Pública. Sob essa perspectiva, as restrições formais impostas pela fazenda pública se constituem em violação a um direito fundamental. O mesmo ocorre com a atual decisão do STJ.

A relação entre contribuinte e terceiro decorre de lei. Assim, por exemplo, o artigo 29 da lei 8.666/83, exige que o interessado faça a prova de quitação dos tributos para se habilitar em licitação. Apresentada a certidão correta, ao terceiro só resta aceitá-la. No entanto, o terceiro tem um interesse a mais: ele almeja segurança jurídica na relação negocial. O conteúdo declarado na certidão faz prova perante o fisco, em favor do terceiro. Interessa a ele a conclusão do negócio sem o risco de, futuramente, ser responsabilizado por atos praticados pelo contribuinte. Nesse sentido, a lei que exige a prova de quitação tem o objetivo de proteger o terceiro. Protegê-lo de forma razoável, sem a criação de obstáculos que impeçam a negociação. Assim por exemplo, nos termos do artigo 133 do CTN, no caso de aquisição de um estabelecimento, o adquirente responderá pelos débitos devidos pelo estabelecimento até a data da aquisição. Neste contexto, considere-se que o estabelecimento a ser adquirido é uma de várias filiais pertencentes a pessoa jurídica, sendo que algumas possuem débitos tributários. Em tal situação, não interessa ao adquirente a prova de regularidade fiscal da pessoa jurídica como um todo. Para os fins determinados pelo artigo 133, a prova de regularidade fiscal do estabelecimento adquirido é a única que exime o adquirente de responder pelos débitos das outras filiais. Em tal situação a nova decisão do STJ é incoerente com o dispositivo e impede o seu exercício.

De todo o exposto podemos concluir que: 1º) a emissão de certidão de certidão tributária é um direito do contribuinte. Presentes os fatos que autorizam a emissão de certidão negativa de débitos (CND) ou de certidão positiva com efeitos de negativa (CPD-EN), é dever do fisco emiti-la; 2º) o fisco não tem competência legal para, por meio de ato administrativo, limitar a modalidade  certidões determinando, por exemplo, que elas somente serão expedidas em nome da pessoa jurídica como um todo, e; 3º) somente a lei tem competência para estabelecer, em razão de cada negócio jurídico,  a modalidade de certidão fiscal mais adequada para a proteção de terceiros.

Por Atilio Dengo, advogado tributarista, doutor em Direito Tributário e professor universitário

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